“E A MULHER TEVE MORTE QUASE INSTANTÂNEA”

Lúcia Sigalho

English

 

 

Morreu uma mulher às nove horas da manhã à porta do infantário onde ia deixar o seu filho de seis anos. O ex-marido, um polícia a quem já tinha sido retirada a arma, roubou a arma de um colega, deslocou-se setenta quilómetros, fez-lhe uma espera, foi direto a eles, arrancou-lhe o filho e, com a criança pela mão, disparou dois tiros sobre a mãe. Matou-a e fugiu com a criança. O presidente da Câmara de Santarém declarou à imprensa que “a mulher teve morte quase instantânea”. Assim. Não sei mais nada sobre ela. Sequer o nome, a cor dos cabelos, se era alegre ou triste ou o que levava nos olhos. Mas este apagamento, este esquecimento que a morte lhe trouxe é a morte “matada”. Ela passou a ser “a mulher”, “a mulher” morta. E a memória, a memória dela, passou a ser nada.

No meu país, todas as semanas morre, pelo menos, uma. Todas as semanas há uma mulher morta por um homem que é, foi ou pretendia ser seu namorado, seu marido, seu amante. Todas as semanas, há uma que passa a ser “a mulher”: sem in memoriam, sem rasto nem história, que deixa de existir assim, trocada em números para a estatística.

Lúcia Sigalho 

 

 

Ficha técnica

Dramaturgia, Pesquisa e Textos Lúcia Sigalho, Fernanda Câncio e Mafalda Ivo Cruz

Interpretação Deborah Crystal e outros

Som João Lucas

Luzes Daniel Worm D’Assumpção

Cenário e Figurinos João Pedro Vale

Produção Sensurround

Coprodução Festival Temps d’Images, Teatro Maria Matos

Sensurround é uma estrutura financiada pelo Ministério da Cultura/Direção Geral das Artes.

“E A MULHER TEVE MORTE QUASE INSTANTÂNEA”

Lúcia Sigalho

 

A woman died at 9 o’clock in the morning at the nursery where she was going to leave her six-year-old son. The ex-husband, a cop who had already been withdrawn, stole a colleague’s gun, walked up to seventy kilometers, waited for her, went straight to them, yanked her son, and with the child by his hand, fired two shots on the mother. He killed her and ran away with the child. The mayor of Santarém told the press that “the woman died almost instantaneously”. Just like this. I don’t know anything else about her. Not even her name, the color of her hair, whether she was cheerful or sad or what was in her eyes. But this erasure, this oblivion that death brought her is the death “killed” itself. She became “the woman”, “the dead woman”. And the memory, the memory of her, became nothing.

In my country, at least one woman dies every week. Every week there is a woman killed by a man who is, was or was meant to be her boyfriend, her husband, her lover. Every week, there is one that becomes “the woman”: without in memoriam, without trace or history, that ceases to exist thus, replaced by numbers for the statistics.

Lúcia Sigalho

 

 

Credits

Screenplay, Research and Words Lúcia Sigalho, Fernanda Câncio and Mafalda Ivo Cruz

Performance Deborah Crystal, among others 

Sound João Lucas

Lighting design Daniel Worm D’Assumpção

Stage setting and Costumes João Pedro Vale

Production Sensurround

Co-production Festival Temps d’Images, Teatro Maria Matos

Sensurround is a structure financed by the Ministry of Culture (Portugal)/Direção Geral das Artes.