“Prémios de cinema para filmes sobre arte III”
3ª edição
VIVER COM INCERTEZAS
Don’t Know We’ll See (“Não Sabemos Vamos Ver”), o título do filme de Lucy Massie Phenyx, é provavelmente a melhor maneira de descrever os poderosos temas que são abordados nos filmes sobre a arte. A seleção de filmes deste ano – que em si já é um manifesto artístico – vai levar-nos, por caminhos variados e muitas vezes contraditórios, até esta incerta e entusiasmante área em construção, onde o espectador poderá instalar-se e onde será convidado a conhecer visões do mundo pouco habituais, comportamentos inesperados, ideias esquecidas, experiências arriscadas, ideias exaltantes e pensamentos estranhos, ao descobrir mundos novos e paralelos. Ao terem a experiência destes terrenos onde se situam os artistas – soltos, não fixos, sempre a mudar – e ao verem como se pode viver e criar neste contexto, os espectadores talvez se sintam mais fortes diante das incertezas da vida diária e profissional, que nos habituámos a delegar a companhias de seguro, especialistas ou líderes…
A começar pela imagem chocante de que os domínios do trabalho humano foram conquistados pelas máquinas, como se pode ver em HandMaid, do sul-coreano Mo Hyun-shin, todos os filmes vão provar que o trabalho artístico não consiste em calcular e que, por conseguinte, não pode ser substituído pela tecnologia. Como o realizador polaco Krzystof Olszowiec demonstra em Good Morning, parece, na verdade, impossível perceber o comportamento ou a ação de um artista unicamente pela observação: afinal, vimos um ser um humano ou um extraterrestre? As mesmas ideias nos vêm à mente quando entramos nos universos únicos de artistas como a portuguesa Ana Jotta em Jotta: A minha Maladresse é uma Forma de Délicatesse, de Salomé Lamas e Francisco Moreira ou a pintora canadiana Sullivan, em Sullivan, de Françoise Dugré. Alguns artistas permitem-nos perceber melhor as suas próprias explicações, como o fazem de modo tão belo Roca Bon em Roca Bon: la Geometria del Alma, do espanhol Karlos Alastruey, o escultor Selinger em Shelomo Selinger – Mémoire de Pierre, do realizador canadiano Alain Bellaiche ou o artista português Ângelo de Sousa em Ângelo de Sousa: Tudo o que Sou Capaz, de Jorge Silva Melo.
Às vezes, a relação entre o artista retratado e o realizador do filme é tão intensa que o realizador consegue revelar aspetos e reações dos artistas que, sem ele, nenhum observador anónimo poderia descobrir. É o que se passa no audacioso filme sobre o audacioso Botero, Botero – Born in Medellin, de Peter Schamoni; no filme esteticamente belíssimo sobre as esteticamente belíssimas esculturas do artista israelita Zvi Lachmann em Rak Be’ayin a’hat (“Com um Olho Bem Aberto”), de Aner Preminger e Ami Drozd; quando Iria Arriaga observa com afeto e respeito, mas sempre como quem está diante de um descobridor, em Jorge de Oliveira – Matéria de Pintura; ou quando os aspetos formais do filme condizem com os da obra de arte, como em Sem Título, de Ana Direito.
A maneira como a arte é praticada também revela muito sobre o enfoque do artista, por exemplo na experiência Mercado do Bolhão: uma Experiência Fotográfica para uma Imagem de Autoria Coletiva, de Cristina Braga, em Dissonanz, de Fumiko Matsuyama e em A Conversation with Myself, quando Kate Pelling realmente executa a criação de uma performance de vídeo, deixando-nos com as dúvidas que ela própria tem… Com o filme sobre a sua performance, Thistles of Sazak, Hakan Akçura não nos dá sequer hipótese de escapar – o seu pesado trabalho para uma performance sob o ardente sol da Turquia é tangível.
A vida humana é absolutamente impensável sem a arte e temos aqui alguns exemplos em que a vida e a arte foram inseparavelmente ligadas: o realizador venezuelano Juan Andrea Bello fala-nos de um casal de Caracas, Armando Planchart e Ana Luísa (Anala), apreciadores de arte e arquitetura moderna, que levaram a cabo o seu audaz projeto de vida em colaboração com o arquiteto italiano Gio Ponti, numa casa chamada El Cerrito. De modo oposto, Le Cabanon pour Le Corbusier, de Rax Rinnekangas, mostra-nos a visão da vida que tinha o célebre arquiteto – mas o espectador vai ficar certamente muito surpreendido com o resultado… No que refere o génio excêntrico e criativo Trimpin, que detesta totalmente o mundo da arte, mas é adorado por artistas e músicos de todo o mundo, o realizador Peter Esmonde, em Trimpin: the Sound of Invention, consegue entusiasmar-nos ao apresentar-nos as esplêndidas criações desta personalidade tão instrutiva. Em Pelas Sombras, Catarina Mourão mostra a que ponto 80 anos de vida ou de arte são inseparáveis, quando a arte de Lourdes Castro se torna idêntica aos gestos da sua vida diária e vice-versa. E depois de vermos When the Themersons Walked Backwards, no entusiasmante filme de Wiktoria Szymanska, vamos certamente perceber que o grau de poesia que pode haver nas nossas vidas só depende de nós…
A arte em relação à sociedade tem várias facetas. Uma faceta especial é mostrada no comovente Or les Murs, de Julien Sallé, que nos conta a história do compositor Thierry Machuel, que organiza workshops de escrita na penitenciária de Clairvaux, na região de Champagne-Ardennes. Os textos dos reclusos serão usados posteriormente nas suas composições, mas antes disto vemos homens numa prisão, que vivem, criam e sentem… Reza Haeri deteta no seu filme All Restrictions End o código secreto e/ou oficial da moda das vestimentas através da história iraniana, tornando mais uma vez evidente que a arte tem mais influência do que algumas pessoas são capazes de reparar. Em Mise-en-Scène, João O. também tenta revelar uma verdade, que ele pensa estar por detrás do Pavilhão Alemão, projetado por Mies van der Rohe para a Exposição Internacional de Barcelona de 1929 e leva-nos a uma ousada visita de descoberta. Na sua curta-metragem de animação Flesh Color, Masahiko Adachi revela simplesmente a beleza das tatuagens japonesas, de modo análogo ao que faz María Trénor em Exlibris, ao criar um poema visual sobre os livros como objetos de arte. Simon Jackson considera as suas duas curtas-metragens sobre artistas e músicos, Landlocked e Buddha, como “um comentário sobre o ato de criar arte a partir daquilo que nos cerca, ao invés de considerar que a arte só é importante se grandes passos forem dados e grandes distâncias forem atravessadas”. Sim e como naquilo que nos cerca tudo espera por ser descoberto, veja-se como o vídeo-flâneur Konstantinos-Antonios Goutos, em After Caspar David Friederich, nos mostra como a arte começa: com o olhar e o deslumbramento.
Se, como escrevi no começo deste texto, a incerteza, ao entrarmos em territórios desconhecidos, é o terreno da criação artística, também é evidente que há vários obstáculos a ser vencidos. Como diz a artista Inuit Shuvinai Ashoona, “tudo é um ruído fantasma… É bom ouvi-los, mas não é bom aprendê-los” – a maneira como ela lida com isto pode ser vista na sensibilidade que marca Ghost Noise, de Marcia Connolly. Ao mesmo tempo, a própria arte traz um grau de estabilidade a esta incerteza, seja como proteção, como quando a artista Colette Urban nos pede que finjamos que não a vemos, em Pretend not to See Me, no filme de Katherine Knight, ou no extraordinário projeto do carismático Lluís Gàrcia, que nos seus workshops de pintura para pacientes esquizofrénicos faz com que os milagres sejam possíveis – como se vê no entusiasmante Retras (“Retratos”) de Quim Fuster e Pau Itarte, no qual ele faz penetrantes revelações sobre a psicologia humana. Vemos de modo muito pessoal e profundo a que ponto os fatores psicológicos influenciam e inclusive inibem os espectadores das obras de arte, em Ein Weites Feld (“Territórios em Expansão”), da alemã Gerburg Rohde-Dahl, que envolveu a sua história pessoal e a da sua família ao tentar abordar o controverso memorial para os judeus assassinados na europa, em Berlim. Aqueles que pensam que esta questão é puramente alemã ver-se-ão diante de importantes reflexões sobre o sentido, as possibilidades e o significado dos memoriais de modo geral e é evidente que este em particular interpela todos os cidadãos do mundo. E podemos afirmar com absoluta certeza que mais ninguém consegue escapar ao que se passa no jogo de poder criado por Liliane Lijn em Power Game. Aqui cada um representa a sociedade humana e as convicções tornam-se transparentes: este é o nosso espelho.
Não sabemos, vamos ver.
Rajele Jain
Ficha técnica
Direção e Programação Rajele Jain
Traduções António Rodrigues
Produção DuplaCena/Festival Temps d’Images
“Temps d’Images Film Awards for films on art III”
3rd edition
LIVING WITH UNCERTAINTIES
The title of Lucy Massie Phenyx’ film “Don’t Know We’ll See” is possibly the best to describe the powerful themes which films on art deal with. This year’s film selection – which is an artistic statement by itself – will lead you from various, most contractionary directions into this uncertain and exciting construction area, where the spectator can exist and where he will be invited to meet unusual world views, unexpected behaviours, forgotten ideas, risky experiments, inspiring ideas, strange thoughts, by discovering new and parallel worlds. By experiencing those loose, non-fixed, ever changing grounds on which artists are based, and seeing how one can live and create within this, can perhaps make the viewers feel stronger to live with those uncertainties of daily and professional life, which one has learned to rather delegate them to insurance companies, experts or leaders…
Starting from the shocking image where the domains of human work have been replaced by machines as it can be seen in HandMaid by the South Korean Mo Hyun-shin, all following films will proof that artistic work is not about how to calculate, therefore not to be substituted by technology. As the Polish director Krzysztof Olszowiec demonstrates in Good Morning, it seems even impossible to understand an artist’s behaviour or action by mere observation: have we watched a human or an alien in the end? Similar thoughts can arise when we are allowed to enter the unique universes of artists such as the Portuguese Ana Jotta in JOTTA: A minha Maladresse é uma forma de Délicatesse (JOTTA: My Maladresse is a way of Délicatesse) by Salomé Lamas and Francisco Moreira or the Canadian painter Sullivan in Sullivan by Françoise Dugré. Some artists give us the chance to understand better their own explanations, as Roca Bon beautifully does in Roca Bon: La geometría del alma (Roca Bon: Geometry of the Soul) by the Spanish director Karlos Alastruey, as so the Polish born sculptor Selinger in Shelomo Selinger – Mémoire de Pierre by the Canadian director Alain Bellaiche or the Portuguese artist Ângelo de Sousa in Ângelo de Sousa: Tudo O Que Sou Capaz (Ângelo de Sousa: All I Can) by Jorge Silva Melo.
Sometimes the connection between the artist portrayed and the filmmaker is so intense that the filmmaker succeeds in revealing aspects and reactions of the artists which otherwise no anonymous viewer would have been able to experience. This happens in the adventurous film about the adventurous Botero in Botero – Born in Medellin by Peter Schamoni; in the aesthetically wonderful film about the aesthetically beautiful sculptors of the Israeli artist Zvi Lachmann in RAK BE’AYIN A’HAT (One Eye Wide Open) by Aner Preminger and Ami Drozd; when Iria Arriaga observes with affection and respect, but always like someone who is before a discoverer, in Jorge de Oliveira – Matéria de Pintura (Jorge de Oliveira – Painting Matter); or when the formal aspects of the film match the aesthetics of the art work as it happens in Sem Título (Untitled) by Ana Direito.
The way how art is practiced shows a lot of the artist’s approach – for example in the experiment Mercado do Bolhão: uma experiência fotográfica para uma Imagem de Autoria Coletiva (Bolhão Market: a photographic experiment for an Image of Collective Authorship) by Cristina Braga, in Dissonanz by Fumiko Matsuyama, and in A Conversation With Myself, when Kate Pelling really performs the creation of a video performance leaving us in the end with her own doubts… With the film about his performance Thistles of Sazak, Hakan Akçura doesn’t even give us any chance to escape – his heavy work for a performance under the hot sun of Turkey is tangible.
Human life is absolutely unthinkable without art, and here we’ll find some examples of lives where both art and life have been inseparably intertwined: the Venezuelan director Juan Andrea Bello tells us about a couple from Caracas, Armando Planchart and his wife Ana Luisa (Anala), both lovers of modern art and architecture, who fulfilled their adventurous life project together with the Italian architect Gio Ponti in a house named “El Cerrito”. On the contrary, the film Le Cabanon pour Le Corbusier by Rax Rinnekangas does show the vision of life of this famous architect – but surely you will be quite surprised with the result… For the eccentric and creative genius Trimpin in Trimpin: The Sound Of Invention who completely hates the commercial art world, yet is cherished by artists and musicians from all over the world, the director Peter Esmonde succeeds to overwhelm us while introducing us to those splendid creations invented by such an enlightened character. In Pelas Sombras (Through Shadows), Catarina Mourão shows how 80 years of life or art are indistinguishable when the art of Lourdes Castro became similar to her gestures of daily life or vice versa. And after watching When the Themersons Walked Backwards, in the inspiring film by Wiktoria Szymanska, we will certainly understand that the grade of poetry in our life depends just on ourselves…
Art has many facets in relation with society. A special feature is shown in Julien Sallé’s moving Or les Murs, which tells the story of the composer Thierry Machuel, who organizes writing workshops at the Clairvaux penitentiary in the Champagne-Ardennes region. The prisoners’ texts will be used later in his compositions, but before this we see men in a prison, who live, create and feel… Reza Haeri reveals in his film All Restrictions End the secret code and/or the official dress code through Iranian history, evidencing once again that art has more influence than some people might notice. In Mise-en-Scène, John O. also tries to reveal a truth, which he thinks to be behind the German Pavilion, designed by Mies van der Rohe for the 1929 Barcelona International Exhibition and leads us on a daring visit of discovery. In his animated short film Flesh Color, Masahiko Adachi simply reveals the beauty of Japanese tattoos, analogously to what Maria Trénor does in Exlibris, while creating a visual poem about books as objects of art. Simon Jackson considers his two short films about artists and musicians, Landlocked and Buddha, as “a commentary on the act of creating art from what surrounds us, rather than considering that art is only important if great steps are taken and great distances are crossed.” Yes, while everything around us waits to be discovered, see how the video-flâneur Konstantinos-Antonios Goutos, in After Caspar David Friederich, shows us how art begins: with the gaze and the fascination.
If, as I wrote at the beginning of this text, the uncertainty, when entering unknown territories, is the domain of artistic creation, it is also evident that there are several obstacles to be overcome. As the Inuit artist Shuvinai Ashoona says, “It’s all of a ghost noise… It’s good to hear them, but it’s not good to learn them” – the way she handles this can be seen in the sensitive present in Marcia Connolly’s Ghost Noise. At the same time, art itself brings a degree of stability to this uncertainty, either as protection, like when the artist Colette Urban asks us to pretend we do not see her, in Pretend not to See Me, in Katherine Knight’s film, or in the extraordinary project of the charismatic Lluís Gàcia, who in his painting workshops for schizophrenic patients makes miracles possible – as it can be seen in Quim Fuster and Pau Itarte’s enthralling Retras (Portraits), in which he makes penetrating revelations about human psychology. We see in a very personal and profound way the extent to which psychological factors influence and even inhibit art viewers, in the German Ein Weites Feld (Expanding Territories), by Gerhard Rohde-Dahl, which involved his personal and familiar history while trying to approach the controversial memorial for the Jews assassinated in Europe, in Berlin. Those who think this question is purely German will be faced with important reflections on the meaning, the possibilities and the meaning of the memorials in general and it is evident that this in particular appeals to the all citizens of the world. Nevertheless, and with absolute certainty, can be said that no one else can escape what is happening in the “power game” created by Liliane Lijn in Power Game. Here each one represents human society and convictions become transparent: this is our mirror.
We do not know, let’s see.
Rajele Jain
Credits
Direction Rajele Jain
Translations António Rodrigues
Production DuplaCena/Festival Temps d’Images