“BOAS GAROTAS (1ª TEMPORADA DE DANÇA VIDEOBRASIL)”
Clarissa Sacchelli
Um conjunto de trabalhos em vídeo – todos parte do Acervo Histórico Videobrasil – foi o ponto de partida para a criação de BOAS GAROTAS.
Este recorte – selecionado e organizado pela via do magnetismo, poderia dizer – operou não somente como uma referência conceptual, mas também como um material bruto constituído de imagens, sons e textos que foram remixados, reinterpretados e/ou reencenados nesta peça.
A relação com estes vídeos indicou aproximações estreitas entre a ação de editar e coreografar e também apontou para lógicas que podem ser construídas a partir do olhar de quem assiste, sugerindo questões acerca dos modos de produção e receção de um vídeo e de uma performance. O investimento nestas questões e também em matérias e imagens pontualmente propostas pelos vídeos selecionados, orientaram BOAS GAROTAS para a necessidade de explorar o erotismo como modo de desprivatizar, excitar e interrogar as relações entre ver e ser visto.
VÍDEOS APRESENTADOS
- DEEP PRESSURE
1984, 3’28” | Alicia Nogueira (Brasil, 1960)
Criando um aquário como cenário pela sobreposição da imagem de peixes sobre um fundo marítimo, uma mulher, que nele aparece imersa, interpreta um discurso cujo som teve o seu timbre modificado e tornado grave a ponto de tornar o seu significado ininteligível. Dançarinas, um cachorro, uma televisão e uma mulher nua no canto do cenário conferem uma atmosfera surreal à situação que, aliada à impossibilidade de compreensão do discurso da mulher, alude de modo irreverente à dificuldade da realização feminina no campo profissional.
- ESCENARIOS II
2014, 15’ (loop) | Maya Watanabe (Peru, 1983)
Em espanhol, escenario significa tanto o lugar em que se desenvolvem os acontecimentos (cena) como a parte do teatro onde a cena ocorre (palco). Não há sinal de presença humana na obra senão pela constatação de que algo aconteceu — um carro abandonado pega fogo — e pelo modo como Watanabe coloca o próprio espectador no lugar de testemunha daquilo a que assiste. Num ciclo de quatro voltas, uma panorâmica 360° mostra cenas que aludem a memórias pessoais da artista e também a acontecimentos da história recente do Peru, seu país de origem. Watanabe investiga, assim, onde começam as histórias individuais e onde elas se encontram com as narrativas coletivas.
- HOMENAGEM A GEORGE SEGAL
1985, 3’32” (loop) | Lenora de Barros (Brasil, 1953) e Walter Silveira (Brasil, 1955)
Homenagem a George Segal, primeiramente uma foto-performance realizada em 1975, transformou-se, dez anos depois, na primeira vídeo-performance de Lenora, inspirada nas figuras solitárias e patéticas do escultor norte-americano. De frente para a câmara, a artista escova os dentes energicamente ao som de She Loves You dos Beatles. A espuma gradativamente transborda até cobrir completamente seu rosto e cabeça, conferindo-lhe um aspeto semelhante ao das insólitas figuras de gesso de Segal.
- JERK OFF 2 – PROJETO DÍZIMA PERIÓDICA
2007, 1’47” (loop) | Alice Miceli (Brasil, 1980)
Prêmio Aquisição – Novos Vetores – 16º Videobrasil, integrante da série Dízima periódica, o vídeo parte do princípio matemático para visualizar uma situação intrinsecamente ligada ao limite: o processo do gozo. Homenagem ao clássico filme de Andy Warhol Blow Job.
- LA PROFESORA
1993, 9’04” – falado em Inglês | Gérman Bobe (Chile, 1963)
Uma caricatura de uma professora que ensina inglês a falantes não nativos. Os seus maneirismos, o seu sotaque, o conteúdo do seu discurso — todos são absurdos, à maneira das personagens de Eugène Ionesco. As imagens da professora intercalam-se com colagens, muitas vezes oriundas de outras obras de Bobe, repletas de elementos da cultura europeia presentes em cenas sensuais, símbolos religiosos, obras de arte e música erudita. Com o seu humor irónico, La Profesora enfatiza o absurdo de ensinar inglês num país onde muitos não conseguem ler a sua língua nativa. A prevalência da língua inglesa nas sociedades pós e neocoloniais é, assim, questionada, tanto política como socialmente.
- RAPTURE (SILENT ANTHEM)
2009, 10’17” | Angelica Mesiti (Austrália, 1976)
Uma câmara de movimento extremamente lento mostra grandes planos em alta definição de rostos de adolescentes que estão na primeira fileira de um festival de rock. Sem saberem que estão sob a mira de uma câmara oculta debaixo do palco, e diante de algo que não vemos, os jovens exibem expressões de intenso fervor emocional, que remetem a imagens icónicas de êxtase religioso. Rapture (arrebatamento) opera pesquisando a fonte da catarse grupal e refletindo sobre a espiritualidade e a presença de experiências rituais na contemporaneidade.
- SAMBA #2
2014, 3’04” (loop) | Chameckilerner (Brazil, 1992)
Samba #2 analisa três imagens essenciais na cultura brasileira: o Carnaval, o samba e a bunda. Ao expor micromovimentos impercetíveis normalmente, revela imagens novas de algo que julgamos conhecer. Abordando a cultura a partir de seu elemento mais corpóreo, o vídeo desconstrói a imagem habitual do corpo feminino e invoca questões-chave brasileiras centradas no corpo, como a sexualidade, violência e beleza.
- TALK ABOUT BODY
2013, 3’49” – legendado | Hui Tao (China, 1987)
O artista apropria-se da linguagem dos programas de televisão chineses para discutir a coexistência de diferentes tempos e culturas, do ambiente urbano e da vida rural, de tradições e progressos que caducam e se reinventam. Sentado na sua cama, trajado como uma mulher islâmica, ele descreve-se. O vídeo discute, com subtileza e força, a aleatoriedade da ideia de pertencimento e o alheamento subjetivo intrínseco ao conceito de identidade.
- THE OGRE
2003, 1’19” | Ip Yuk-Yiu (Hong Kong, 1974)
Fragmentos de imagens de filmes pornográficos antigos são apropriados por meio de espelhamento conferindo um aspeto caleidoscópico a este vídeo experimental. A multiplicação dos fragmentos de imagem em movimento, assim como num caleidoscópio, cria novas formas, evidenciando ao mesmo tempo a dimensão de pura plasticidade e autoerotismo das imagens. O rosto, a boca, as mãos e demais partes do corpo passam a figurar apenas como formas vermelhas e rosadas que se redobram sobre si mesmas. Melodias aceleradas e de notas curtas interpretadas por um conjunto de cordas acompanham o ritmo de mudança das formas visuais, levando-nos numa viagem plástica e onírica pelo sexo.
Ficha técnica
De Clarissa Sacchelli
Em criação com Carolina Callegaro, Luisa Puterman, Renan Marcondes
Coreografia e Performance Carolina Callegaro, Clarissa Sacchelli
Pensamento visual Renan Marcondes
Banda sonora Luisa Puterman
Voz (banda sonora) Hwa Young Lee Lucy, Han Ah Lum
Operação de legendas e som Josefa Pereira
Execução cenário Zang & Zagatti
Agradecimentos Associação de Dança Tradicional Coreana, Casa Líquida, Julia Feldens, Flora Kountouriotis, Anna Turra, Artur Kon
Obras do Acervo Histórico Videobrasil usadas como referência Jerk Off 2 – Projeto Dízima Periódica, de Alice Miceli; Escenarios II, de Maya Watanabe; Rapture (Silent Anthem), de Angelica Mesiti; Female Sensibility, de Lynda Benglis; Homenagem a George Segal, de Lenora de Barros e Walter Silveira; Deep Pressure, de Alicia Nogueira; Samba #2, de Chameckilerner; La Professora, de Gérman Bobe; The Ogre, de Ip Yuk-Yiu; Talk about body, de Hui Tao.
Obra comissionada pela Associação Cultural Videobrasil
1ª Temporada de Dança Videobrasil
Organização Associação Cultural Videobrasil e Estúdio Baile (Itinerância)
Conceção e Coordenação Thereza Farkas
Consultoria e Curadoria Carolina Mendonça, Marcos Gallon
Artista convidada Clarissa Sacchelli
“BOAS GAROTAS (1ST SEASON OF DANÇA VIDEOBRASIL)”
Clarissa Sacchell
A group of video pieces – all part of the Acervo Histórico Videobrasil – was the departure point for the creation of BOAS GAROTAS.
This cut – selected and organized through magnetism, one could say – operated not only as a conceptual reference, but also as a raw material made up of images, sounds and texts which were remixed, reinterpreted and/or redirected in this piece.
The relationship with these videos indicated narrow approaches between the action of editing and choreographing, and pointed to rationales that can be constructed from the point of view of the audience, suggesting questions on the modes of production and reception of a video and a performance. The investment in these questions, and also in subjects and images occasionally proposed by the selected videos, pointed BOAS GAROTAS towards the necessity of exploring eroticism as a way of deprivatizing, exciting and interrogating the relationship between seeing and being seen.
VIDEOS PRESENTED
- DEEP PRESSURE
1984, 3’28” | Alicia Nogueira (Brazil, 1960)
Using an aquarium as a setting by juxtaposing images of fish with an ocean background, a woman, who appears immersed in it, delivers a speech whose sound pitch has been modified and made deep so as its meaning is unintelligible. Dancers, a dog, a television set, and a naked woman on the edge of the scene give the situation an almost surreal atmosphere which, together with the impossibility of understanding the woman’s speech, humorously alludes to the difficulty of female accomplishment in the professional field.
- ESCENARIOS II
2014, 15’ (loop) | Maya Watanabe (Peru, 1983)
In Spanish, escenario (scenery) means both the place where action takes place (scene) and the portion of the theater where the scene plays out (stage). There is no sign of human presence in the work but through the confirmation that something has happened—an abandoned car burns—and how Watanabe places the spectators themselves as witnesses of what they are watching. In a four-turn cycle, a 360° panoramic shows scenes that allude to personal memories of the artist, as well as to events of the recent history of Peru, her native country. Watanabe thus investigates where individual stories begin and where they intersect with collective narratives.
- HOMENAGEM A GEORGE SEGAL
1985, 3’32” (loop) | Lenora de Barros (Brazil, 1953) and Walter Silveira (Brazil, 1955)
Homenagem a George Segal (Tribute to George Segal) began as a photo-performance conducted in 1975 and became, ten years later, in Lenora’s first video-performance, inspired by the lonely, pathetic figures by the American sculptor. Facing the camera, the artist brushes her teeth vigorously to the sound of the Beatles’ She Loves You. The foam gradually overflows, completely covering her face and head, giving her an aspect similar to Segal’s eerie characters.
- JERK OFF 2 – PROJETO DÍZIMA PERIÓDICA
2007, 1’47” (loop) | Alice Miceli (Brazil, 1980)
How to represent the infinite space between two points? Making reference to Andy Warhol’s classic film Blow Job (1964), the work, part of the Dízima Periódica (Repeating Decimals) series, departs from this mathematical principle to create an image of sexual enjoyment, a situation connected to the limits of experience and imagination. By refusing the logic of the instantaneous, it invests in the image of what cannot be portrayed. Leaving aside naïve notions of the present time, it presents us a standard shattered by one of the most universal and common human activities.
- LA PROFESORA
1993, 9’04” – English | Gérman Bobe (Chile, 1963)
A caricature of a professor teaching English to non-native speakers. Her mannerisms, her accent, the content of her speech—all are absurd, in the tradition of Eugène Ionesco’s characters. Images of the professor alternate with collages, many taken from Bobe’s other works, filled with elements of the European culture present in sensual scenes, religious symbols, artworks, and classical music. Through its ironic humor, La Profesora (The Teacher) foregrounds the absurdity of teaching English in a country where many cannot read their native language. The prevalence of the English language in post and neocolonial societies is thus called into question, both politically and socially.
- RAPTURE (SILENT ANTHEM)
2009, 10’17” | Angelica Mesiti (Australia, 1976)
A camera in ultra-slow motion shows high definition close‐ups of faces of teenagers who are in the front row of a rock festival. Unaware that they are under the spotlight of a hidden camera underneath the stage, and engrossed in a show we can’t see, their faces wear expressions of intense emotional fervor redolent of iconic imagery of religious ecstasy. Rapture plumbs the sources of group catharsis and reflects on the spirituality and presence of ritual experiences in the contemporary life.
- SAMBA #2
2014, 3’04” (loop) | Chameckilerner (Brazil, 1992)
Samba #2 analyzes three essential images of Brazilian culture: Carnival, samba, and the butt. The slow-motion camera exposes micro-movements that are usually imperceptible, revealing new images of a reality we assume to know. Approaching culture from its most visceral and corporeal element, the video deconstructs the habitual image of the female body to evoke a series of key Brazilian issues revolving around the body as sexuality, violence, beauty, and dance.
- TALK ABOUT BODY
2013, 3’49” – w/ subtitles | Hui Tao (China, 1987)
The artist appropriates the language of Chinese TV shows to discuss the coexistence of different times and cultures, of the urban environment and rural life, of tradition and progress that expire and reinvent themselves. Sitting on his bed, wearing the garments of a Muslim woman, the artist describes himself. The video subtly and powerfully discusses the randomness of the notion of belonging and the subjective detachment intrinsic to the concept of identity.
- THE OGRE
2003, 1’19” | Ip Yuk-Yiu (Hong Kong, 1974)
Fragments of old pornographic films are appropriated of through mirroring, gaining a kaleidoscopic aspect to this experimental video. The multiplication of fragments of moving images, just as in a kaleidoscope, creates new forms while revealing the dimension of pure plasticity and self-eroticism of the images. The face, mouth, hands, and other parts of the body become mere red and pink shapes that fold unto themselves. Fast, short-noted melodies interpreted by a string ensemble accompany the changing rhythm of the visual forms, taking us on a plastic and dreamy journey through sex.
Credits
By Clarissa Sacchelli
In collaboration with Carolina Callegaro, Luisa Puterman, Renan Marcondes
Choreography and Performance Carolina Callegaro, Clarissa Sacchelli
Visual conception Renan Marcondes
Soundtrack Luisa Puterman
Voice (soundtrack) Hwa Young Lee Lucy, Han Ah Lum
Subtitles and Sound operator Josefa Pereira
Scenic execution Zang & Zagatti
Acknowledgements Associação de Dança Tradicional Coreana, Casa Líquida, Julia Feldens, Flora Kountouriotis, Anna Turra, Artur Kon
Works from the Acervo Histórico Videobrasil used as references Jerk Off 2 – Projeto Dízima Periódica, by Alice Miceli; Escenarios II, by Maya Watanabe; Rapture (Silent Anthem), by Angelica Mesiti; Female Sensibility, by Lynda Benglis; Homenagem a George Segal, by Lenora de Barros and Walter Silveira; Deep Pressure, by Alicia Nogueira; Samba #2, by Chameckilerner; La Professora, by Gérman Bobe; The Ogre, by Ip Yuk-Yiu; Talk about body, by Hui Tao.
Work commissioned by the Videobrasil Cultural Association for the 1st Season of Dança Videobrasil.
1st Season of Dança Videobrasil
Organized by Associação Cultural Videobrasil and Estúdio Baile (Itinerância)
Concept and Coordination Thereza Farkas
Consulting and Curating Carolina Mendonça, Marcos Gallon
Invited artist Clarissa Sacchelli